terça-feira, 21 de setembro de 2010

O direito de não ler


    O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros:
o verbo “amar”... o verbo “sonhar”...
Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: “Me ame!” “Sonhe!” Leia!” “Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!”
_ Vá para o seu quarto e leia!
Resultado?
Nulo.
Ele dormiu em cima do livro. A janela, de repente, lhe pareceu imensamente aberta sobre uma coisa qualquer tentadora. Foi por ali, que ele decolou. Para escapar ao livro. Mas é um sono vigilante: o livro continua aberto diante dele. E no pouco que abrimos a porta de seu quarto, nós o encontramos sentado junto à escrivaninha, seriamente ocupado em ler.
Mesmo se nos aproximarmos na ponta dos pés, da superfície de seu sono ele nos terá escutado chegar.
_ Então, está gostando?
Ele não vai nos responder que não, isto seria um crime de lesa-majestade. O livro é sagrado, como é possível não gostar de ler? Não, ele vai dizer que as descrições são longas demais.


    Essa aversão pela leitura fica ainda mais inconcebível se somos de uma geração, de um tempo, de um meio e de uma família onde a tendência era nos impedir de ler.
_ Mas pára de ler, olha só, você vai estragar a vista!
_ Sai, vai brincar um pouco, está fazendo um tempo tão bonito!
_ Apaga, já é tarde!
É isso, o tempo estava sempre bom demais para ler, ou então era a noite, escura demais.
À descoberta do romance se juntava a excitação da desobediência familiar. Duplo esplendor! Ah, a lembrança dessas horas de leitura roubadas, debaixo das cobertas, à luz fraca de uma lanterna elétrica!
    Eles se amavam, aqueles dois, e isso já era lindo em si, mas eles se amavam contra a proibição de ler e isso era ainda melhor. Eles se amavam contra pai e mãe, se amavam contra o dever de matemática não terminado, contra a “dissertação” a preparar, contra o quarto por arrumar, eles se amavam em vez de irem para a mesa, eles se amavam antes da sobremesa, eles se preferiam à partida de futebol, à colheita de cogumelos... Eles se tinham escolhido e se preferiam a tudo mais... Ah, meu Deus, o belo amor!
E como o romance era curto...


    E assim vão nossos propósitos, vitória perpétua de linguagem sobre a opacidade das coisas, silêncios luminosos que dizem mais do que calam. Vigilantes e informados, não somos os enganados. O mundo inteiro está naquilo que dizemos  __ e totalmente esclarecido pelo que calamos. Somos lúcidos. Melhor ainda, temos a paixão da lucidez.
De onde vem então essa vaga tristeza de depois da conversa? Desse silêncio de meia-noite? Da perspectiva da louça a lavar?
Vejamos... A algumas dezenas de metros daqui __ um sinal vermelho __ nossos amigos estão presos nesse mesmo silêncio que, passada a embriaguez da acuidade, toma conta dos casais, quando voltam para casa, em carros fechados. É como um certo gosto de ressaca, o fim de uma anestesia, uma lenta volta à consciência, o retorno a si mesmo e o sentimento vagamente doloroso de não nos reconhecermos naquilo que estivemos dizendo. Nós não estávamos lá. Tudo mais estava, certo, os argumentos eram justos __ e, sob esse ponto de vista, tínhamos razão __, mas não estávamos lá. Sem dúvida, mais uma noite sacrificada à prática anestesiante da lucidez. 

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